Feirantes de bairro nobre de SP relatam impotência perante coronavírus
Saúde
Publicado em 08/04/2020

Feirante Cláudia de Jesus, 26, munida de máscara e álcool gel/Imagem: Janaina Garcia/UOL

Na capital do estado que mais registrou mortes por coronavírus até essa terça-feira (7), o apelo das autoridades de saúde pelo uso de máscaras de proteção, mesmo que caseiras, em caso de saída ao ambiente externo, parece ainda não ter surtido efeito a uma parcela da população. Em pontos da região oeste de São Paulo, área que concentra a maior parte de casos confirmados na cidade, andar pelas ruas durante o dia, nessa terça-feira (7), chegava a dar a impressão de que se tratasse de um feriado, e não um dia 'normal' de trabalho, embora sob quarentena decretada pelas autoridades.

A reportagem de VivaBem visitou uma feira livre na região —no bairro de Perdizes, que integra a Uvis (Unidade de Vigilância em Saúde) Lapa/Pinheiros, área que inclui bairros ricos da capital como Jardim Paulista, Itaim Bibi e Pinheiros. É nessa Uvis que, de acordo com levantamento divulgado no último dia 31 pela Prefeitura de São Paulo, havia a maior parte das confirmações por covid-19 na capital: 284, à época.

Na feira, que tinha movimentação aquém dos dias normais, segundo os feirantes, era comum ver clientes e vendedores sem proteção facial —embora o item fosse mais presente entre consumidores. Entre os feirantes, a reportagem viu poucos deles fazerem uso da máscara, embora quase a totalidade deles exibisse (e usasse, em diversas ocasiões) recipientes de álcool gel.

"Feirante precisa trabalhar", diz mulher que perdeu tia

Feirante há oito anos, Renata Aparecida Gomes, 31, era uma das que vendiam legumes e verduras resguardadas pelo álcool, mas desprovidas de máscara. De acordo com ela, o motivo seria uma rinite alérgica "que piora quando eu uso a máscara".

Feirante Shirley Pedroso, 67, sobre a máscara: "Ah, filha, difícil acostumar com aquilo" Imagem: Janaina Garcia/UOL "

Mas, no fundo, eu me sinto impotente. A gente que é feirante precisa trabalhar. Acho um absurdo quando eu vejo idoso sem máscara ou gente com muita tosse, também sem máscara, andando pela feira", define.

Moradora da Brasilândia, bairro de periferia da zona norte paulistana, Renata conta que a covid-19 deixou marcas na casa dela.

"Perdi uma tia para a doença, semana passada. Consegui me despedir dela de longe, do carro, antes de o caixão seguir para o crematório", relata, mostrando a foto que a mãe dela postou em uma rede social, homenageando a irmã.

"As pessoas acham que é brincadeira, têm pouca consciência, mas tem gente morrendo com esse vírus. Não é só rico que pega, não", define.

Com dor de garganta, máscara e álcool gel

 A também feirante Cláudia de Jesus, 26, começou cedo no ofício: aos 16 anos. Com olhos vermelhos e dor de garganta, ela negou que tivesse os sintomas clássicos da covid-19 —especialmente tosse seca, perda do olfato, febre ou cansaço ao respirar—, mas reforçou as palavras da colega Renata, bancas adiante da dela: simplesmente não poderia se dar o direito de ficar em casa durante a pandemia, mesmo sendo a favor do isolamento defendido pela OMS (Organização Mundial da Saúde) e pelo Ministério da Saúde.

Dupla de feirantes Benedito Furtado, 59, e Jaqueline Vieira, 44: "Trabalhar em feira com isso o tempo todo é inviável" Imagem: Janaina Garcia/UOL

"Não tenho muita opção, porque a feira é o meu ganha-pão. Mas, se a pessoa pode ficar em casa, eu acho que ela não deve abrir mão disso", pediu. Em mãos, álcool gel a cada atendimento. E máscara caseira no rosto.

Feirantes dizem não se acostumar com a máscara

Feirante há cinco décadas, Shirley Pedroso, 67, está dentro de um dos grupos de risco para a doença, uma vez que tem mais de 60 anos. Ela elogiou a opção pelo isolamento, mesmo com a queda no movimento da feira, e garantiu que usa não só o álcool gel, como a máscara caseira.

Indagada pela reportagem sobre o paradeiro da máscara, a feirante desconversou: "Ah, filha, difícil acostumar com aquilo. Mas eu tenho a máscara, sim, ela só está guardada."

Renata Aparecida Gomes, 31: "Rinite piora quando eu uso a máscara" Imagem: Janaina Garcia/UOL

Outros feirantes idosos, se não estivessem sem o adereço, o mantinham abaixo do queixo, na altura do pescoço. Em mais de uma oportunidade, o comentário mais comum foi: a máscara incomoda e atrapalha o atendimento.

A dupla Benedito Furtado, 59, feirante há dez anos, e Jaqueline Vieira, 44, feirante há 30, companheiros de venda em uma banca, se queixou do apetrecho. Mas garantiu que havia encomendado máscaras de pano, caseiras.

"Tenho aqui essa máscara, mas, veja, ela esquenta demais. Trabalhar em feira com isso o tempo todo é inviável", classificou Furtado. "Mas eu reconheço que é importante: vi ontem na TV um infectologista dizer que a imensa maioria dos infectados pelo vírus é assintomática", arrematou, referindo-se a uma estatística que, segundo estudos médicos recentes, supera os 80% dos contaminados.

"Fazemos feira em São Paulo todos os dias da semana e, ao menos aqui, nunca vimos nenhum cliente com sintomas. As bancas estão até bem separadas umas das outras", mostra Jaqueline, apontando para o espaço de um metro e meio entre os pontos de venda.

"Vemos mercados com aglomeração de consumidores"

Sobre as medidas de redução das aglomerações urbanas, ela foi taxativa: concorda com elas. Nessa segunda (6), por exemplo, o governo do estado ampliou a quarentena em até mais duas semanas, ou seja, até o próximo dia 22.

Por outro lado, a feirante observa: "Entendo que é necessário o comércio fechar, mas temos muitos amigos e clientes que são pequenos comerciantes e foram obrigados a baixar as portas, sendo que, paralelamente, vemos supermercados abertos e com aglomeração de consumidores. Não achamos essa uma situação exatamente justa", lamentou.

De acordo com a feirante, a feira na região é "até tranquila", comparada a outras feiras das quais ela participa nas zonas leste e sul da cidade. "Aqui é uma área onde quem costuma vir à feira são as diaristas, não as patroas. Com quarentena vigente e com os colégios e a universidade [no caso, a PUC-SP] da região fechados, o movimento ficou tranquilo. Na periferia, é um por cima do outro, as pessoas quase entram na barraca", relatou.

Cliente da feira visitada por VivaBem, a psicóloga Gislaine Martins, 36, foi às compras devidamente paramentada. Munida de luvas, touca, máscara e álcool gel, ela explicou que a ida ao local é um dos raros momentos em que deixa a casa durante a quarentena.

Mesmo assim, ela fez questão de ressalvar que, embora com a proteção, não entra em casa com os sapatos usados na rua e, em tempos de pandemia, ao chegar, vai direto tomar um banho. "Claro que não existe método 100% seguro de proteção", admite. "Mas algo que eu vi aqui e que me chamou muito a atenção foi ver a quantidade de feirantes idosos sem a máscara", destacou.

Idoso sem máscara conta que levou bronca de policial

Também cliente da feira, Vanderley Francoso, 73, se mostrou mais despreocupado que a psicóloga —ao menos, na ida à feira. O aposentado, que disse ser a favor do isolamento, mas contrário ao fechamento do comércio, disse acreditar que, com menos gente circulando por ali, as chances de contaminação dele seriam muito menores. "Quase não saio de casa; tomo praticamente um 'banho' de álcool gel não só quando chego, como para tudo o mais que faço, porque minha mulher é grupo de risco para a doença —tem 77 anos e uma porção de problemas de saúde—, desinfeto tudo. Não tenho como comprar pela internet, e meus filhos estão todos em outra s cidades", justificou.

Perguntado sobre o não uso da máscara, sintetizou: "Se for da vontade de Deus, não tem o que fazer. Vamos todos morrer, mesmo, um dia, e não vai ser uma máscara que mudará isso. Acredita que até um policial já me repreendeu por me ver andar na rua sem máscara?"

Números da pandemia no Brasil e em São Paulo

Até a tarde dessa terça (7), o estado de São Paulo havia registrado 371 mortes por coronavírus, 67 a mais que o dia anterior —ou seja, quase três óbitos por hora. O total de casos confirmados somava 5.682, 16% a mais que os 4.866 casos do dia anterior.

Já a capital concentrava 297 mortes, além de 4.503 casos confirmados e outros 12.258 suspeitos.

Em todo o Brasil, conforme o Ministério da Saúde, subiu para 667 o número de mortes pelo novo coronavírus —aumento de 114 óbitos confirmados em comparação com as 24 horas anteriores, novo recorde registrado no período. Até segunda (6), eram 553 mortes.

No total, são 13.717 casos oficiais no país até agora —alta de 1.661 casos de covid-19 de um dia para o outro—, segundo o governo. Os dados anteriores indicavam 12.056 casos confirmados.

Por: Viva Bem/UOL

 

 

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