Como Carnaval ajudou a propagar coronavírus em Nova Orleans, que pode se tornar um dos epicentros nos EUA
04/04/2020 13:59 em Mundo

Carnaval em Nova Orleans; há temor de que o coronavírus tenha um efeito tão devastador quanto o de tragédias anteriores. (Foto: EPA, via BBC News Brasil)

 

Carnaval em Nova Orleans; há temor de que o coronavírus tenha um efeito tão devastador quanto o de tragédias anteriores

 

Enquanto o mundo assiste ao avanço do novo coronavírus em Nova York, autoridades de saúde estão preocupadas com o possível surgimento de um novo epicentro da covid-19 (a doença causada pelo novo coronavírus) nos Estados Unidos.

Segundo especialistas em saúde pública, o Estado da Louisiana - e, especialmente, sua maior cidade, Nova Orleans - pode se tornar um novo foco da doença, colocando em risco toda a região Sul do país. Até sexta-feira (3), a Louisiana registrava mais de 9 mil casos e mais de 300 mortes, segundo o Departamento Estadual de Saúde.

Desses, mais de 3 mil casos e 125 mortes ocorreram na Paróquia de Orleans, onde fica a cidade de Nova Orleans.

Apesar de um volume total ainda bem menor do que em outras partes dos Estados Unidos, a Paróquia de Orleans, com 391 mil habitantes, vem registrando um aumento rápido no número de casos. Há duas semanas, eram menos cem doentes e três mortes. Agora, a Paróquia de Orleans tem a maior taxa de mortalidade per capita entre todos os condados (as subdivisões administrativas nos Estados americanos) do país.

Um dos motivos apontados para a explosão no número de casos é a realização do carnaval de Nova Orleans, chamado de Mardi Gras (termo francês que significa Terça-Feira Gorda, em referência à véspera da Quarta-Feira de Cinzas), que neste ano atraiu cerca de 1,4 milhão de pessoas vindas do mundo todo e se estendeu por três semanas, até 25 de fevereiro.

"Acredito que é provável que o Mardi Gras tenha contribuído para o fato de termos uma aumento tão rápido no número de casos", diz à BBC News Brasil o médico especialista em doenças infecciosas Richard Oberhelman, professor da Escola de Saúde Pública e Medicina Tropical da Universidade Tulane, em Nova Orleans.

"O momento em que os primeiros casos foram identificados coincide muito bem com o período habitual de incubação do coronavírus", observa Oberhelman, que é diretor do Escritório de Saúde Global da universidade.

O coronavírus tem um período de incubação de até 14 dias. O primeiro caso na Louisiana foi diagnosticado em 9 de março, 13 dias depois do encerramento das festividades.

Aumento rápido

Um estudo do economista Gary Wagner, professor da Universidade da Louisiana em Lafayette, comparou a evolução da doença em diversos Estados e países no período de 15 dias após a confirmação do primeiro diagnóstico e concluiu que, nesse intervalo de tempo, o aumento no número de novos casos na Louisiana foi o mais rápido do mundo.

Nesta semana, o médico Anthony Fauci, diretor do Instituto Nacional de Alergias e Doenças Infecciosas dos Estados Unidos e um dos principais nomes da força-tarefa da Casa Branca que está respondendo à pandemia, alertou que a "dinâmica da epidemia" em Nova Orleans indica que haverá uma aceleração no número de casos.

O governador da Louisiana, John Bel Edwards, disse na semana passada que o avanço da doença no Estado segue uma trajetória similar às da Itália e da Espanha e que, a partir da próxima semana, haverá falta de respiradores e de leitos nos hospitais, sobrecarregados com o aumento no volume de pacientes.

Há o temor de que o impacto do novo coronavírus em Nova Orleans seja agravado pelo fato de a cidade ter grande número de moradores pobres, sem acesso a plano de saúde e com altas taxas de obesidade, diabetes e hipertensão, que são consideradas fatores de risco para desenvolver formas graves de covid-19.

Preocupação distante

Quando mais de 1 milhão de foliões vindos do mundo todo para celebrar o Carnaval em Nova Orleans começaram a tomar ruas e bares, em meados de fevereiro, o coronavírus era uma preocupação distante.

No último dia da festa, 25 de fevereiro, o epicentro da covid-19 ainda era a China. Havia apenas 57 casos nos Estados Unidos, sendo 40 deles ligados ao navio Diamond Princess, e não havia indícios de transmissão comunitária no país. Todos os pacientes até então haviam viajado ao Exterior, e a única orientação do governo federal era a de que os americanos evitassem viajar a países com grande número de casos.

O primeiro caso da doença na Louisiana só seria diagnosticado quase duas semanas depois, em 9 de março, em Nova Orleans. Logo, outras pessoas que não haviam viajado ao Exterior e não tinham conexão entre si começaram a ficar doentes, indicando que já havia transmissão comunitária. Também começaram a ser registrados casos em outros Estados do Sul, de pessoas que haviam passado o Carnaval em Nova Orleans.

Especialistas em saúde pública agora acreditam que o novo coronavírus já estivesse circulando silenciosamente na cidade durante o Mardi Gras, talvez trazido por alguns dos turistas. Muitas das pessoas infectadas não apresentam sintomas e podem propagar a doença sem saber.

Alguns chegaram a comparar o Mardi Gras a um desfile que reuniu 200 mil pessoas na Filadélfia em 1918, durante a pandemia de gripe espanhola. Naquele episódio, autoridades locais se recusaram a cancelar o evento mesmo diante de evidências de que poderia aumentar a disseminação da doença. Como resultado, a Filadélfia acabou sendo uma das cidades americanas mais devastadas pela gripe espanhola, com 47 mil doentes e 12 mil mortos somente nas seis semanas seguintes ao desfile.

Mas mesmos os especialistas que fazem a comparação apontam para uma diferença crucial.

Enquanto o desfile da Filadélfia foi realizado quando autoridades já sabiam que a gripe espanhola estava circulando pela cidade, na época do Carnaval em Nova Orleans as autoridades locais não haviam sido alertadas de que poderia haver risco de transmissão do coronavírus.

Resposta das autoridades

Diante de algumas críticas de que as autoridades não reagiram com a rapidez necessária, a prefeita de Nova Orleans, LaToya Cantrell, afirma que, se tivesse sido alertada pelo governo federal ou por autoridades da área de saúde de que havia riscos, teria cancelado o Mardi Gras.

Mas, no final de fevereiro, mesmo cidades americanas que já registravam casos de coronavírus ainda mantinham aglomerações públicas. Foi somente por volta de 10 de março que grandes eventos culturais e esportivos começaram a ser cancelados ao redor do país.

O governador da Louisiana declarou emergência de saúde pública em 11 de março, dois dias após o primeiro diagnóstico. Nova Orleans cancelou as comemorações de St. Patrick's Day, previstas para 17 de março, e que costumam levar multidões a bares e ruas das cidades americanas, assim como outros eventos culturais.

Mas o cancelamento do desfile de St. Patrick's Day foi criticado na época, e muitos bares da cidade continuavam lotados no fim de semana anterior.

No dia 16, o Estado ordenou o fechamento de bares e restaurantes. No dia 23, foi emitida a ordem para que os moradores da Louisiana não saiam de suas casas, a não ser para atividades essenciais, como comprar comida ou ir ao médico.

Com as restrições, as ruas da cidade, famosa pela música e pela vida noturna, estão quietas e vazias. As autoridades já preveem um impacto devastador na economia, em grande parte dependente do turismo.

 

Pobreza e doenças crônicas

Oberhelman e outros especialistas ressaltam que, apesar do provável papel importante, o Mardi Gras não foi o único fator para o avanço do coronavírus na cidade, que é um destino turístico durante o ano inteiro e onde muitos vivem na pobreza e em proximidade uns com os outros - o que dificulta manter regras de distanciamento social.

Calcula-se que a cidade tenha cerca de 1,2 mil sem-teto.

O Estado tem uma das taxas de pobreza mais altas dos Estados Unidos (de 18,6%, segundo o Censo americano) e, mesmo em períodos normais, tanto a Louisiana quanto Nova Orleans já registram taxas de hospitalização maiores do que a média do país.

Um estudo da organização sem fins lucrativos Kaiser Family Foundation indica que 43% da população adulta da Louisiana corre risco de desenvolver formas graves de covid-19 em caso de contágio - já que muitos tem doenças crônicas consideradas fatores de risco.

Outro estudo, do instituto de pesquisas Data Center, com sede em Nova Orleans, concluiu que, em comparação com moradores de outras partes do país gravemente afetadas pelo coronavírus, como Nova York ou Seattle, os residentes de Nova Orleans são mais pobres e apresentam taxas mais altas de diabetes, hipertensão e obesidade.

História marcada por tragédias

Nova Orleans tem uma história atribulada e já enfrentou epidemias e destruição no passado. Em 1853, um surto de febre amarela matou 7.849 pessoas. Em 2005, a cidade foi arrasada pelo furacão Katrina, que deixou mais de 1,5 mil mortos. Agora, há o temor de que o coronavírus tenha um efeito tão devastador quanto o de tragédias anteriores.

"Nova Orleans está se preparando para uma mobilização que esperamos nunca mais ver em nossas vidas", disse o diretor de Segurança Interna da cidade, Collin Arnold. "Esse desastre irá nos definir por gerações."

Diante da previsão de que haverá falta de leitos hospitalares nos próximos dias, estão sendo tomadas medidas para abrigar os doentes. Um dos planos é transferir até 3 mil pacientes em estado menos grave - que necessitem de hospitalização, mas não de respiradores artificiais - para o centro de convenções Ernest N. Morial.

Em 2005, logo após a passagem do Katrina, esse mesmo centro de convenções se tornou um símbolo das falhas na resposta das autoridades àquela tragédia. Na época, milhares de pessoas que haviam perdido suas casas foram direcionadas para o local para aguardar resgate e serem levadas a um abrigo mais permanente. Mas a desorganização levou os desabrigados a permanecerem dias no centro, sem água, comida, medicamentos ou segurança.

"Nova Orleans tem muita experiência em enfrentar eventos catastróficos e desafios difíceis", salienta Oberhelman. "Depois do Katrina, aprendemos a nos unir como comunidade e a tomar decisões difíceis. E voltamos mais fortes e, de algumas maneiras, melhor. Espero que o mesmo aconteça agora."

 

Fonte: BBC NEWS BRASIL/G 1

 

COMENTÁRIOS