As medalhas de 2019, sempre com o unicórnio/BAA
A guerra ou um atentado não suspenderam a grande prova pedestre do planeta, agora comprometida pela interferência de um coronavírus
Invariavelmente, de 1897 até 2019, sempre no terceiro final de semana de Abril, toda a região metropolitana de Boston, Massachusetts, Estados Unidos, se mobilizou para abrigar um ritual super-charmoso: a preparação e daí a realização da sua Maratona. Nem mesmo o atentado de 2013, quando duas bombas explodiram com a prova ainda em andamento, comprometeu a continuidade do evento. Trata-se de uma data enciclopédica, por celebrar a cavalgada noturna de Paul Revere (1735-1818), um artesão de metais que, em 1775, galopou horas através da Nova Inglaterra a fim de avisar as populações rebeldes do desembarque de reforços britânicos no porto de Boston.
A estátua de Paul Revere, do escultor Cyrus Dallin/Reprodução
Muito mais insidioso do que qualquer invasor imperial, ou de que uma guerra mundial, coube a um micro-organismo, o SARS CoV-2, também chamado de “o novo coronavírus”, provocar o primeiro adiamento da Maratona de Boston em mais de 120 anos. Diante do inexorável, a elevação dos Estados Unidos ao topo do pódio em número de infectados e de mortos em todo o planeta, os organizadores da prova optaram pelo seu adiamento. Existe uma data prevista na alça de mira, 14 de Setembro, uma segunda-feira, também no terceiro final de semana. Ninguém, porém, pode garantir nada.
Estimulada pela repercussão da Maratona que reviveu os Jogos Olímpicos em Atenas/1896, uma entidade local, a Boston Athletic Association, BAA, instituiu a corrida, na principal cidade de Massachusetts, em 1897. Por óbvias dificuldades de aferição, a corrida pioneira se desenrolou numa medida equivocada, só 39.400 metros, ao invés dos clássicos 42.195. Apenas 15 atletas se habilitaram. John J. McDermott, de apelido “JJ”, registrou o seu nome na História ao estabelecer o tempo de 2h55’10”. Em 1898, o título ficaria com um canadense, Ronald J. MacDonald, 2h42’00. Tardaria para um não-americano se sagrar campeão, o grego Peter Trivoulides, em 1920.
O perfil das terríveis colinas de Heartbraek/Reprodução YouTube
O comprimento oficial, que a International Association of Athletics Federations, IAAF, codificou em 1921, foi adotado, em Boston, na edição de 1924, e desde então não mais se alterou. A prova principia em Hopkinton, no Condado de Middlesex, atravessa ao menos meia dúzia de subúrbios independentes da metrópole, e se encerra na Praça Copley, no velho centro da cidade. Além de ser a mais antiga do planeta, a Maratona de Boston também é a mais difícil por causa das colinas que, da Washington Street até a Commonwealh Avenue, ostentam uma diferença de nível de 46 metros e obrigam os atletas não profissionais à mera e lentíssima caminhada.
Karen Switzer, o fiscal idiota e os protetores da atleta/Reprodução
Claro, com o tempo, além de se ajustar ao comprimento oficial, a Maratona de Boston ampliou o seu escopo. Na sua centésima edição, em 1996, por exemplo, estabeleceu um incrível primado mundial: dos seus 38.708 inscritos, 35.868 completaram o trajeto. E as mulheres? Em 1966, Bobbi Gibb desafiou o regulamento e os preconceitos, e atravessou a linha de chegada na frente de uma dúzia de damas, 3h21’40”. Mas, não teve o direito de envergar um número de concorrente pregado à sua camiseta. Daí, em 1967, Kathy Switzer, sob o nome de “K. V. Switzer”, os longos cabelos escondidos debaixo de um boné, obteve o número 261. No meio da prova, porém, um fiscal idiota, Jock Semple, descobriu que se tratava de uma moça e, de maneira brutal, tentou lhe arrancar o número. Ótimo, para a equanimidade de gêneros, foi impedido por diversos atletas, homens, que solidariamente escoltavam Kathy.
Rosie Ruiz, de coro de louros, antes da sua eliminação/Reprodução
Formalmente autorizadas a partir de 1972, sucesso de Nina Kuscsik dos EUA, 3h10’26”, em 1980 as mulheres protagonizaram um escândalo patético. A vencedora, a cubana Rosie Ruiz, acabou desclassificada, depois de receber a sua coroa de louros, porque um teipe atestou que havia cortado caminho. Outro escândalo aconteceu na prova de 2014, quando Rita Jeptoo, do Quênia, caiu no exame anti-doping e perdeu o título para Bizunesh Deba, da Etiópia. Detalhe: valesse o triunfo de Jeptoo, o Quênia acumularia 13 vitórias desde 2000. E a marca de Deba, 2h19’59”, permanece até hoje como o recorde.
Sunita Williams, a Maratona de Boston no espaço sideral/NASA
Nenhuma garota, porém, cumpriu uma performance tão espetacular como a astronauta indiana-americana Sunita Williams. Em 2007, durante a sua permanência na ISS, a Estação Espacial Internacional, paralelamente à Maratona cá na Terra ela correu os 42.195 metros dentro da cabine, em plena órbita. Foi agraciada com uma medalha como a dos competidores do solo. Na face da medalha, que todos os disputantes recebem, independentemente do seu posto na classificação, paira o desenho de um unicórnio, símbolo da batalha pela excelência que talvez seja inalcançável. Importante: o unicórnio já representa o emblema da Maratona de Boston desde a edição inicial.
Luiz Antonio dos Santos, numa competição no Brasil/Webrun
De 1897 até 1980 eram mesmo a medalha do unicórnio e a coroa de louros os únicos galardões por quê os atletas se esforçavam. Então, começaram a surgir patrocinadores e os prêmios em dinheiro. Hoje, inclusive, as mulheres e os homens recebem os mesmos montantes: cerca de R$ 785.000 pelo primeiro lugar, a metade pelo segundo. Os lauréis vão até o 15º posto dos rapazes, R$ 7.850. E até já houve um brasileiro no pódio, Luiz Antonio dos Santos, o terceiro em 1995 com o tempo de 2h11’02”. Dentre as garotas, em 1994, Carmen de Oliveira havia ficado com a quinta posição, 2h27’41”, até agora o recorde do País. A mesma Carmen que, logo em 1995, se tornaria a primeira brasileira a ganhar a antológica prova de São Silvestre.
Carmen de Oliveira, na São Silvestre de 1995/São Silvestre
O lado masculino do Brasil, porém, desafortunadamente, também ingressou nos anais da Maratona de Boston pela porta dos fundos. Em 2019, um certo Alexandre Faria se vangloriou por terminar a prova em 3h01’55”. Mentira. Os controles intermediários mostraram que ele correu até os 5km, tempo de 34’06”, e que só ressurgiu nos 40,5km, tempo de 2h50’29”. Mantivesse o ritmo dos 5km, apenas chegaria aos 40,5km em mais de 4h30. Teria ele voado, à Usain Bolt, no intervalo? Não. Claro que cortou caminho ou pegou uma carona. Foi desclassificado. No processo, a investigação descobriu que ele já havia falcatruado a sua participação, antes, na Maratona de Chicago, em 2017.
Geoffrey Mutai, do Quênia, o recordista desde 2011/Boston Marathon
Melhor relembrar a descomunal qualidade dos fundistas do Quênia, espetaculares igualmente entre os rapazes. Em 1990, numa prova dramática, o italiano Gelindo Bordin se tornou o primeiro dos homens a somar as vitórias em Maratona dos Jogos Olímpicos, Seul/1988, e em Boston. Estava bastante atrás de Juma Ikangaa, de Tanzânia, na Heartbreak Hill, a mais radical das três colinas, quando o ultrapassou e escancarou uma folga de 500 metros. De Bordin em diante, todavia, em 29 edições, os atletas do Quênia abiscoitaram 20 sucessos. E desde 2011, pertence a Geoffrey Mutai, com 2h03’02” o seu recorde absoluto. Pena, o adiamento. Boston tem 650.000 habitantes. Mas, na Maratona de 2019 recebeu mais de 500.000 visitantes.
Por: Esportes R7