O que a nova versão de Jornada nas Estrelas: O Filme traz de novo
Cinema
Publicado em 24/11/2022

“Quando olhamos de perto, percebemos que havia apenas pequenas melhorias que poderiam ser feitas sem mudar o filme como um todo, como experiência. Queríamos que fosse o mesmo que você achou que viu quando foi [ao cinema] assisti-lo pela primeira vez”, explica Michael Matessino, supervisor de restauração de Jornada nas Estrelas: O Filme (1979). A fala aparece na faixa de comentários do DVD que foi lançado em 2001, trazendo uma nova edição do primeiro longa-metragem da franquia criada por Gene Roddenberry (1921-1991).

Essa Versão do Diretor teve como objetivo deixar a obra um pouco mais próxima da visão original do cineasta Robert Wise (1914-2005), que, inclusive, coordenou o projeto. Ao mesmo tempo, uma das preocupações foi, como Matessino ressalta, não promover mudanças fundamentais no filme — ou seja, sem polêmicas do tipo “Han Solo atirou primeiro”.

Assim, a equipe se concentrou em aprimorar os efeitos visuais e sonoros, mantendo alguma “sujeira”, de modo que o novo material não destoasse demais do antigo. De quebra, foram feitas pequenas edições, como cortes discretos e o acréscimo de cenas deletadas, que, com uma exceção notável, não têm impacto na trama.

Nova versão, nova apreciação

Agora, quatro décadas depois de seu lançamento original, o filme ganha uma novíssima versão, em formato digital, disponível para compra e aluguel nas plataformas Apple TV e Amazon Prime Video. Ela traz os mesmos cortes e acréscimos da Versão do Diretor de 2001, novas melhorias nos efeitos e, desta vez, áudio e vídeo remasterizados em Ultra HD com Dolby Vision HDR e Dolby Atmos.

O time responsável pela roupagem em alta definição foi encabeçado por profissionais que já tinham trabalhado com o diretor Wise na primeira restauração, em 2001: o já citado Matessino, o produtor David C. Fein e o supervisor de efeitos visuais Daren R. Dochterman.

De certo modo, essa trajetória de aprimoramentos espelha o processo de reavaliação positiva pela qual Jornada nas Estrelas: O Filme tem passado no decorrer do tempo. Isso porque, embora tenha feito sucesso nas bilheterias na época, parte da crítica e dos fãs considerou a obra decepcionante, especialmente no que se refere à trama lenta, quase sem ação, e ao final um tanto anticlimático.

Ou, como Vincent Canby (1924-2000) resumiu em sua análise para o jornal The New York Times, em dezembro de 1979: “Roddenberry tem de livrar a cara de seus heróis passivos, e a única maneira de fazer isso é provar que a ameaça imensa não é tão ameaçadora quanto parecia”. Essa impressão desfavorável só fez se acentuar com o lançamento da aclamada sequência, Jornada nas Estrelas II: A Ira de Khan (1982).

Não há dúvida de que o roteiro é problemático, para dizer o mínimo. Na trama, uma misteriosa nuvem cósmica de proporções gigantescas destrói três espaçonaves Klingon e se dirige rumo à Terra. A Frota Estelar então decide enviar a USS. Enterprise para investigar e deter a ameaça, já que, ancorada em uma doca espacial para reforma e modernização, é a única nave na rota.

Pela importância da missão, o agora almirante James T. Kirk (William Shatner) é incumbido de reassumir seu antigo posto de comando da Enterprise, reencontrando, assim, seus velhos companheiros: o oficial médico Leonard McCoy (DeForest Kelley), o engenheiro-chefe Montgomery Scott (James Doohan), a oficial de comunicações Nyota Uhura (Nichelle Nichols), o oficial tático Pavel Chekov (Walter Koenig) e o piloto Hikaru Sulu (George Takei).

Além deles, há dois novos membros que se destacam. Willard Decker (Stephen Collins) é o novo capitão da Enterprise, profundo conhecedor das configurações atuais da nave; com a volta de Kirk, acaba sendo rebaixado a comandante e, por isso, se mantém em atrito com ele. Illia (Persis Khambatta) é a nova oficial de navegação, uma Deltana com quem Decker havia mantido amizade (e, implicitamente, um romance não consumado) no passado.

Enquanto isso, Spock (Leonard Nimoy), que havia retornado a seu planeta natal para o ritual Vulcano conhecido como Kolinahr, em que o indivíduo expurga os resquícios de emoção e abraça a lógica pura, interrompe o treinamento. Ele sente uma consciência extremamente poderosa e racional em algum lugar do espaço e, a fim de encontrar respostas, decide se juntar à velha tripulação, assumindo novamente como oficial de ciência. A bordo, revela aos colegas que a tal consciência emana da nuvem.

Uma jornada cheia de percalços

Colocada dessa forma, a trama parece descomplicada. Ela é, todavia, fruto de uma conturbada produção, com muito vai e vem em termos de script, formato e elenco. Após o cancelamento da série de televisão original, em 1969, Roddenberry, seu criador, retomou a ideia de desenvolver um longa-metragem. Ao longo dos anos seguintes, o projeto chegou a ter duas versões de roteiro completamente diferentes — o primeiro, por sinal, já trazia a ideia de um oponente todo poderoso que ameaça a Terra, incorporada ao que se tornou Jornada nas Estrelas: O Filme.

Diante das dificuldades de concretizá-lo, o plano de um longa foi abandonado em detrimento de uma nova série de televisão, batizada de Jornada nas Estrelas: Fase II. Anunciada pela Paramount em 1977, estava prevista para estrear no início do ano seguinte. Para o script do episódio piloto, com duas horas de duração, foi selecionada uma história proposta pelo escritor de ficção científica Alan Dean Foster — nela, estava o argumento central de uma antiga sonda da NASA que adquire consciência e retorna ao planeta de origem a fim de exterminar os seres humanos, vistos como infestação.

Nesse meio-tempo, havia muita incerteza quanto ao envolvimento de William Shatner e, principalmente, Leonard Nimoy na série. Isso levou os realizadores à criação de novos personagens para suprir a eventual ausência dos astros: Decker (que, potencialmente, seria o protagonista), Illia e Xon (um jovem Vulcano, que seria o novo oficial de ciência da Enterprise).

Em 1978, com a pré-produção em andamento, o estúdio anunciou que a nova série não seguiria adiante. O episódio piloto, porém, seria transformado em um longa-metragem para o cinema, sob direção de Robert Wise, vencedor do Oscar por Amor, Sublime Amor (1961) e A Noviça Rebelde (1965), bem como responsável pelo clássico sci-fi O Dia em que a Terra Parou (1951).

O roteiro, ainda baseado na história de Foster, precisou ser reescrito por Harold Livingston, que até então atuava como produtor da Fase II. Ele teve não só de conciliar novos e velhos personagens (Shatner e Nimoy tinham enfim confirmado suas participações) como ainda lidar com as interferências de Roddenberry.

Assim como o processo de produção, o resultado não foi ideal. Apesar da boa recepção do público, Jornada nas Estrelas: O Filme é falho — e o próprio diretor Wise considerava o produto que chegou às telonas apenas “um primeiro corte bruto”, segundo Michael Matessino. E esses defeitos, em grande parte, nem as novas iterações conseguiram consertar.

Principais diferenças entre as versões

Em um excelente trabalho, o perfil Star Trek TMP Visual Comparisons (no Twitter, @StarTrekVisComp) organizou comparações entre cenas chave nas três versões: a original, de 1979 (identificada como TE, Theatrical Edition, extraída do blu-ray lançado em 2021); a primeira Versão do Diretor (TDE 2001, ou The Director’s Edition 2001, extraída do DVD lançado naquele ano); e o mais recente lançamento (TDE 2022, ou The Director’s Edition 2022, extraída da cópia digital lançada neste ano).

A seguir, uma breve análise de algumas delas — e o que podem representar.

Hora certa em Vulcano

Créditos: @StarTrekVisComp

 

O planeta natal de Spock foi originalmente criado com uma técnica cinematográfica chamada matte painting, que consiste em um cenário pintado sobre uma enorme placa de vidro. Nas versões de 2001 e 2022, foi empregada a mesma técnica, apenas atualizada com recursos digitais. A paisagem, porém, foi modificada para combinar melhor com o que vem a seguir: a atmosfera monástica do templo e o fato de as cenas se passarem à luz do dia.

Toda essa sequência em Vulcano é importante, pois introduz o único arco dramático do filme que se conclui de maneira satisfatória: Spock recusa a conclusão do ritual Kolinahr ao sentir a consciência de V’Ger, cujas dúvidas existenciais espelham as suas; mais tarde, ao se conectar mentalmente com a entidade, percebe que a lógica pura não traz todas as respostas.

“If you’re going to San Francisco…”

Créditos: @StarTrekVisComp

 

A transição entre Vulcano e o quartel-general da Frota Estelar era bem mais brusca: uma rápida cena de um transporte voando ao lado da ponte Golden Gate, seguida de um corte para o interior do prédio. Nas versões de 2001 e 2022, essa passagem é suavizada com a introdução de uma cena mais longa, que acompanha o transporte por mais tempo e inclui uma tomada em que se vê o exterior do complexo da Frota.

Na próxima sequência, já dentro da sede, ocorre a única aparição de Sonak, o novo oficial de ciência da Enterprise. Trata-se de uma reformulação de Xon, o jovem Vulcano que originalmente substituiria Spock. Com a entrada de Nimoy no projeto, o personagem teve sua participação abreviada — poucos minutos depois, Sonak é casualmente desintegrado devido a uma falha no teletransporte (logo consertada), sem drama ou consequência.

Amor verdadeiro

Créditos: @StarTrekVisComp

 

Ao longo de uma demorada sequência exibindo a Enterprise reformada, em que brilha a trilha sonora de Jerry Goldsmith (1929-2004), há, na versão de 1979, um close no rosto embevecido de Kirk. As versões de 2001 e 2022 concretizam o intuito original do diretor, algo não executado na época por limitações técnicas: mostrar, nessa mesma tomada, o reflexo da nave no vidro do transporte em que o personagem está, traduzindo poeticamente, em uma imagem, seu amor pela Enterprise.

É uma cena breve, mas potente, que consegue trazer alguma humanização para esta representação de Kirk. Somado à performance pouco inspirada de Shatner, o roteiro falha em reproduzir o charme rebelde e um tanto fanfarrão do protagonista na série de tevê — no filme, acabam transparecendo teimosia e arrogância condescendente.

Explosões displicentes

Créditos: @StarTrekVisComp

 

Presa em uma fenda espacial, a Enterprise se vê em rota de colisão com um asteroide, evitada com um disparo certeiro de torpedos fotônicos. Na versão original, a cena da explosão do corpo celeste deixa aparente parte do teto do estúdio em que foi filmada. As versões de 2001 e 2022 corrigem o erro e melhoram a composição, colocando a nave e as reverberações da fenda na tomada.

A sequência é simbólica do atrito entre Kirk e Decker, já que é a intransigência do primeiro que os coloca em risco e a confiança do segundo, ao desafiar uma ordem do capitão, que os salva. No entanto, tão negligente quanto a explosão que revela demais é a introdução desse conflito envolvendo os dois personagens. Além de não levar a lugar algum em termos dramáticos (novamente, não há consequências fora a troca de farpas), a oposição não é resolvida de maneira concreta — em determinado momento, eles simplesmente passam à camaradagem, sem que antes haja um explícito reconhecimento mútuo.

Nem sempre menos é mais

Créditos: @StarTrekVisComp

 

Quando a porta da nave de V’Ger se abre na versão original, já se vislumbra a estrutura sobre a qual o “corpo” da entidade repousa. A fim de melhor transmitir a escala gigantesca daquele veículo, a versão de 2001 introduziu ali um túnel conectando a porta à câmara onde V’Ger se encontra — deste modo, tudo o que se vê através da abertura é escuridão. Já a versão de 2022, incrementa a noção de profundidade, ao permitir enxergar a luz no fim do túnel.

Se a adição do túnel é um detalhe interessante, porém cosmético, o acréscimo que vem logo a seguir é valioso para a trama. Em uma cena deletada na versão original, mas recuperada nas novas, Kirk pede a Scotty que se prepare para, ao seu comando, executar a ordem de autodestruição da Enterprise. Com isso, o valor de Kirk como capitão é reforçado, uma vez que estabelece que ele tem um plano B para derrotar V’Ger, caso o encontro com a entidade não traga os resultados esperados.

Luz para dar um clima

Créditos: @StarTrekVisComp

 

Quando a transmissão do código da sonda é interrompida, Illia diz: “o Criador deve se unir a V’Ger”. Ela então se vira para Decker e, de modo significativo, repete a frase, encarando-o com uma emoção que até então estava ausente — nesse instante, na versão original, a luz sobre os personagens se torna avermelhada. Enquanto a versão de 2001 suavizou essa mudança, a de 2022 voltou a enfatizá-la, acrescentando ainda um clarão vermelho acima do casal em sua hora decisiva.

Aqui, o que pode parecer mera perfumaria é, na verdade, um recurso visual importante: é com aquela frase, aquela troca de olhares e aquela luz quente, sublinhando o momento dramático, que o par percebe que seu destino está selado. Infelizmente, como a relação de Decker e Illia carece de aprofundamento no restante do filme, a resolução entre eles (e, consequentemente, a resolução da grande ameaça de V’Ger) acaba parecendo anticlimática.

Tudo em seu devido lugar

Créditos: @StarTrekVisComp

 

Uma das tomadas finais do filme, em sua versão original, é marcada por um erro de continuidade: Spock e McCoy aparecem com os trajes trocados: o primeiro com a braçadeira azul e o segundo com a braçadeira laranja, ao contrário do que havia aparecido até ali. Curiosamente, apesar de ciente da falha, a equipe optou por não corrigi-la na versão de 2001 — quase como um easter egg para os fãs. A versão de 2022 enfim devolve a cada personagem seu traje correto.

À sua maneira, esse pequeno detalhe resume um pouco do espírito da nova restauração. Jornada nas Estrelas: O Filme está longe de ser perfeito; apesar disso, depois de todos esses anos, o longa ainda pode render surpresas positivas — basta um olhar cuidadoso e generoso.

 

Via: Jovem Nerd

 

 

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